Há um dimensão que pertence ao mundo feminino. Não se trata de um segredo, nem de um tesouro. Mas é profunda… tão profunda como as nossas cavernas uterinas tantas vezes endemonizadas e que tem levado tantas mulheres à loucura e depressão.
De forma inata, o nosso corpo e células sabem, desde o momento em que somos concebidas na barriga das nossas mães, que algo nos distingue da energia masculina. É um estado. Uma consciência. Sabemos que somos e seremos diferentes. Com um mundo próprio e escuro, não fosse o nosso útero remeter-nos para tal consciência toda a nossa vida.
As nossas ancestrais, há milhares de anos compreendiam de forma inata esta profundidade uterina. Tinham rituais próprios que as faziam viajar para dentro do útero da Mãe Terra, para serem engolidas e renascerem. Usavam de forma sagrada o sangue menstrual para o devolver em tributo à Grande Mãe. A energia sexual era preservada, cuidada e nutrida como uma extensão sagrada de si mesmas. O corpo era respeitado por todos, sem violações ou abusos. Parir era um acto sagrado de manifestação da vida e abundância da Grande Mãe. Sangrar era a celebração dos ciclos da vida. Cantar, chorar e render eram práticas normais, naturais e fluídas.
As nossas ancestrais reuniam-se nas tendas, kivas, temazcal, inipi para sangrarem juntas quando a Lua chegasse. Aí ela doavam umas às outras o que era necessário fluir para que o seu bem-estar emocional, mental, físico e energético estivessem nutridos e equilibrados. As nossas ancestrais compreendiam de forma inata e hereditária que só assim se poderiam preservar num círculo muito próprio e única para si mesmas. Do lado de fora deste espaço uterino, os homens protegiam-nas e aos seus ciclos. Compreendiam que as mulheres eram Lunares, o que os ajudava também a compreender as suas próprias luas. Uma herança que era zelada pelas mulheres mais velhas, consideradas as guardiãs do conhecimento e das vontades da Grande Mãe, do Grande Espírito.
Há cerca de 5 mil anos, a energia do Planeta muda, o consciente colectivo começa a empatizar com a energia patriarcal que, gradualmente, vai desconectando homens e mulheres da ligação sagrada à Grande Mãe, até que, eventualmente, os seus tentáculos abraçam quase todo o Planeta transformando a raça humana em máquinas de guerra, as mulheres tornam-se troféus a conquistar e a violar, as crianças deixam de ser sagradas e passam a brincar com espada ou armas de fogo, o homem sangra para Terra mas para isso mata o seu irmão. As velhas guardiãs são apelidadas de loucas. As mulheres cíclicas e lunares são consideradas bipolares e histéricas.
A mulher, gradualmente, perde a ligação ao seu corpo, desvincula-se dos ciclos da Terra e da Lua, passa em servir o masculino, substituindo de forma coxa e frágil a ligação que antes mantinha com a Grande Mãe. As meninas são iniciadas na Menarca como algo feio e sujo. O sexo da Mulher é desvirtuado em algo demoníaco. As curandeiras são queimadas na bruxa… Todos estes eventos e tantos outros marcam a nossa cultura ocidental. Não o podemos negar.. uma cultura que adulterou, violou, castrou, mudou à força e impôs a morte a todas aquelas tribos das Américas que mantinham a sua cultura e cosmologia ancestral desde há 40 mil anos. A loucura do neurótico ocidental levou a morte dolorosa até à pureza do corpo e do espírito.
Nesta viagem, a mulher vai perdendo forma de partilhar os seus segredos, as suas emoções, as suas histórias. Os momentos de mistério da Lua e dos ciclos da Terra são perdidos no tempo e espaço à medida que ser mulher é motivo de castração, violação, anulação e medo. As meninas vivem em silêncio, as mulheres anulam-se e as velhas que deveriam ser sábias tornam-se mulheres frias e que tão bem vestem a pele do patriarcado que castra a mulher-filha e a mulher-neta que é parida por si. Pois a sua mãe fez o mesmo. A sua avó fez o mesmo… As sabedorias passadas de avós para netas deixam de ser a magia, as plantas, os segredos e as Luas… Passam a ser passados, de geração em geração, o silêncio mordaz, a castração, a dependência ao macho, a lei da espada e o corte de ligações ao útero…
Sim, o útero… mais do que o coração… é o grande sacrificado. Uma cruz interna que as mulheres carregam, o cálice da vida, que se tornou instrumento de manuseio de vontades e dotes, anulado e amaldiçoado de geração em geração. Avós que ensinam às netas que o útero e o sangue é a fonte de todos os seus problemas… que dali devem nascer filhos varões para os seus homens… que deve estar sempre disponível para os desejos e caprichos de outrem… Sim, é o útero o grande sacrificado, pois dali não nasce mais o milagre, a vida, a cura e a transformação… Dali passam a nascer os herdeiros, as depressões, os quistos, os miomas, as candidiases, vaginites e afins…
O útero deixou de ser celebrado para ser amaldiçoado. Passamos a assumir que só através dele seremos amadas, o que não está de todo fora de realidade, uma vez que é, de facto, no útero que nós, mulheres, poderemos receber amor e manifestá-lo. Local sagrado da manifestação da vida divina. Contudo, este não é mais alimentado na dádiva, amor e recolhimento que tínhamos há milhares de anos, honrando a nossa ligação sanguínea e celular à Mãe Terra. O útero passa a ser alimentado pelo vazio imenso que sentimos e que nos levam a procurar uma e outra relação sexual que nos possa encher, que nos leva a tomarmos pílulas para não sangrarmos todos os meses, que nos levam a uma série de maus tratos que nos consomem por dentro e que se alojam no útero até chegar ao coração… e depois chegam à mente, à loucura, dissociação, sofrimento e histeria… que nos levam aos anti-depressivos e anulação da nossa existência em prol de algo exterior.
Agora andamos nós, as netas das mães das nossas mães, a ganhar consciência do que é isto de curar o Útero. O que implica. Qual o caminho a fazer e que requer irmos à herança das nossas avós para assumirmos, aqui e agora, a responsabilidade pelo que queremos para o nosso corpo e caminho. Que história é esta que carregamos no ventre? Que fio nos conduz desde há gerações e gerações? Como chegámos a este momento em que a dor e amor ecoam tão fortemente dentro do nosso útero que quase nos estrangula o peito e nos leva a um limbo entre e lucidez e a loucura.
O caminho que andamos a fazer de resgate da nossa ciclicidade, da nossa lua, da Grande Mãe em cada uma de nós leva-nos, igualmente, e de uma forma lúcida e consciente, a caminhos tão densos, escuros e depressivos dentro de nós. Contudo, é a iniciação suprema da mulher que caminha para si mesma, onde ela é apresentada ao espelho entre si e a sua avó materna. Olhar nos olhos da nossa avó materna e entender qual o acordo que temos juntas para nos ter feito chegar onde estamos. Olhar para o coração dela e perceber, aceitar e empatizar todas as dores pelas quais ela passou até chegar aqui. Colocar as nossas mãos no seu útero e mergulhar nele, voltar a ele, para que nos sejam contadas as histórias de sofrimento, horror, mágoa, loucura e profunda tristeza. Respirando e mergulhando, até nos conectarmos àquele momento em que ela ficou grávida da nossa mãe biológica e todas estas informações foram passadas via placenta e cordão umbilical para a formação daquela bebé que guardou no seu pequenino útero a história que nos iria herdar…
Honrar este caminho das nossas avós permite-nos libertar gerações e gerações de mulheres desconectadas de si mesmas. Permite-nos libertá-las a elas do serviço que nos prestaram num acto de amor e de dor. Vai trazer-nos espaço de conexão e aprofundamento, sem o qual não teremos possibilidade de seguirmos em frente e sermos fiéis ao que a nossa alma e corpo de mulher nos pedem para o exercício do resgate desta consciência feminina de transformação e amor à Grande Mãe que nos anima e sustenta.
Somos cíclicas, sim. Somos lunares. Somos mulheres. Avós, mães e netas aqui seguimos juntas no reconhecimentos dos espelhos sem princípio e sem final, como as espirais da vida e dos labirintos da Deusa. Aquilo que as nossas avós nos apresentam é o princípio do nosso caminho como mulheres em busca de lucidez e equilíbrio. Pelo caminho, as doulas destes partos vão-nos olhando nos olhos e dizem-nos: “eu sei, meu bem, eu sei… eu compreendo… entrega e liberta… eu sei que dói, mas também sei o quanto há de amor nesta história…”. E pelo meio gritamos juntas, pelo meio choramos juntas… pois as dores que nos unem são as mesmas. E isto não é de todo um ode à dor, mas sim um ode ao que somos na nossa profundidade, intensidade e sensibilidade. Pois sabemos que para lá da dor vem um amor imenso que nos liberta do limiar da loucura, onde nos podemos abandonar nas nossas cavernas e fazermos depois o caminho até à luz do Sol que fertiliza abundantemente a Terra.
Escrevo este texto em homenagem a Mulheres que amo profundamente e com quem tenho feito viagens a estes limiares, mas só assim nos temos parido umas às outras, reconhecendo essa fronteira para lá da dor que nos leva a um amor profundo umas pelas outras. São vivências celulares, antigas e inesquecíveis que a Mãe nos recorda à medida que mergulhamos uma e outra vez. Experiências e vivências que só são permitidas quando nos entregamos ao Círculo de Confiança que ousamos alimentar diariamente cada vez que nos encontramos para aprofundar as riquezas que se escondem no subsolo da nossa psique e das nossas células. Não há nada de metafísico aqui. É tudo visceral, humano e feminino. Como nós. Honro-nos. Cada vez mais. Pela coragem, entrega e compreensão do caminho feito e a fazer. Pois é a Mãe que nos guia.
Por todas as nossas relações.
por Isabel Maria Angélica | 15 de Setembro de 2015
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